sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Folha de São Paulo, sábado, 13 de setembro de 2008

ARTIGO
Folha de São Paulo, sábado, 13 de setembro de 2008

Obama: o preço de ser negro
Candidato democrata terá que contornar obstáculos como entraves ao voto dos negros, consultas sobre ação afirmativa e preconceito latente que distorce pesquisas

ANDREW HACKER
DA "NEW YORK REVIEW OF BOOKS"

EM MAIO , Hillary Clinton descreveu muitos de seus principais eleitores como "americanos que trabalham arduamente, americanos brancos". A declaração parecia alegar -sem fazê-lo diretamente- uma vantagem sobre Obama, e uma vantagem devida à raça. Mas precisamos saber mais. Podemos compreender que o fato de alguém ser um agricultor, um operador de mercado financeiro ou um colecionador de armas influencie seu voto. E podemos entender os motivos para que os americanos negros desejem ver uma pessoa de sua raça na Casa Branca. Mas o que exatamente faria com que um eleitor, por ser branco, se inclinasse por um candidato em vez de outro? Hillary Clinton deu a entender que essa identidade era saliente para alguns eleitores e que ela poderia atrai-los. Pesquisas demonstram que entre 15% e 20% dos eleitores brancos na Pensilvânia, em Ohio e na Virgínia Ocidental afirmam que "raça" é um dos fatores que definem seu voto, e ficamos sem saber qual é a importância desse fato e que proporção dos eleitores teria dito a mesma coisa se todos fossem igualmente francos. As pessoas se sentem incomodadas ao falar sobre raça, mas persiste o sentimento de que essa parte da herança de Obama possa virar a eleição contra ele em 4 de novembro.

1) Barack Obama só poderá se tornar presidente caso inspire um comparecimento de eleitores às urnas em número superior ao dos votos que ele não obterá. Isso bem pode significar que um número maior de americanos negros terá de ir às urnas do que em qualquer eleição do passado, no mínimo porque o eleitorado é predominantemente branco e não se sabe para onde irá o voto branco. Os obstáculos ao voto negro sempre foram formidáveis, mas neste ano haverá barreiras que campanhas anteriores não enfrentaram. Já há muito tempo, o ímpeto político vinha sendo na direção do voto universal. As qualificações patrimoniais foram abolidas; o imposto a ser pago pelos eleitores foi eliminado; a idade do voto foi reduzida a 18 anos. Mas agora há forças significativas em ação para reduzir o eleitorado, ostensivamente a fim de combater fraudes e remover do registro eleitoral votantes desqualificados por algum motivo. Mas o efeito real dessas medidas é que dificultam o voto para muitos negros, em larga medida porque eles são mais vulneráveis a essa forma de barreira do que outras partes da população.

Licença para votar
Em uma decisão por seis a três em abril, a Corte Suprema dos EUA sustentou uma lei adotada em 2005 pelo Estado de Indiana, sob a qual os eleitores do Estado teriam de apresentar um documento estadual dotado de fotografia nas urnas. Na prática, isso quer dizer carteira de motorista ou passaporte. Já que menos de um terço dos adultos americanos dispõe de passaporte, o caso de Indiana girava basicamente em torno do número de cidadãos adultos desprovidos de carteiras de motorista. Segundo a Administração Rodoviária Federal, 673.926 adultos em Indiana não têm carteiras de motorista, o que representa o nada trivial total de 14,7% dos potenciais eleitores no Estado. Requerer uma carteira de motorista no momento da votação tem efeito desproporcional entre as raças, uma constatação que no passado já atraiu atenção judicial. As pessoas que não dirigem precisam recorrer ao departamento de veículos motorizados mais próximo, o que pode representar uma longa jornada para alguns. Em uma pesquisa do Departamento da Justiça em 1994, foi encontrada entre os negros da Louisiana propensão quatro a cinco vezes maior a não dispor da foto necessária a um documento de identificação. (Para não mencionar falta de acesso a um carro.) Uma pesquisa publicada em Wisconsin em 2005 foi ainda mais precisa. Não menos de 53% dos negros adultos no condado de Milwaukee não tinham carteiras de motorista, ante 15% dos adultos brancos no restante do Estado. Para o autor, disparidades semelhantes ocorrem em todo o país. A decisão sobre o caso de Indiana não só dificultará o registro de novos eleitores como obrigará muita gente que se registrou sem documentos que portassem foto, no passado, a apresentar um documento com foto na hora de votar. Se estendermos as proporções acima citadas ao resto do país, será preciso muita assistência prática.

Registros eleitorais
Em 2002, o Congresso aprovou uma lei com o simpático título de "Ajudando a América a Votar", supostamente para impedir problemas como os que causaram dúvidas sobre o resultado da eleição presidencial de 2000. Para garantir que os eleitores não enfrentem problemas em suas seções eleitorais, cada Estado tem a obrigação de manter um "registro eletrônico de eleitores", de alcance estadual, à qual cada distrito teria acesso eletrônico. Os Estados também foram instruídos a manter essas listas atualizadas. Um dos métodos é o envio de cartas a todos os eleitores registrados, e a eliminação dos nomes daqueles cujas cartas são devolvidas porque eles não são encontrados. Mas as famílias negras tendem a se mudar mais, especialmente nas cidades, e poucas delas se lembram de notificar as autoridades eleitorais. Quando Ohio eliminou de seu registro eleitoral 35.427 eleitores não localizados, em 2004, uma revisão constatou que seus endereços ficavam "majoritariamente em áreas urbanas e ocupadas por minorias". A Flórida não utiliza o sistema de confirmação postal de eleitores. Em lugar disso, emprega computadores que comparam os nomes dos eleitores aos seus números de Seguro Social, que são depois enviados a Washington para determinar se eles procedem. Quem quer que tenha desenvolvido esse sistema deveria saber que a Administração do Seguro Social é incapaz de confirmar nomes submetidos em 28% dos casos em que é consultada -por exemplo, nos casos em que se trate do nome de solteira de uma mulher casada. Para não falar da possibilidade de erros de digitação. A Flórida também utiliza a lei para verificar registros criminais, já que pessoas condenadas por crimes perdem o direito ao voto. Nesse caso, no entanto, estranhamente, o Estado requer que apenas 80% das letras do nome verificado coincidam com o registro. Assim, se existir um sujeito chamado John Peterson condenado por homicídio, o software cassa o direito de voto de todos aqueles chamados John Peters. Tendo em vista as estatísticas raciais quanto à população carcerária, a probabilidade de que os negros tenham nomes que se assemelhem aos de portadores de fichas criminais é muito maior. Segundo uma juíza dissidente quando da aprovação da norma, embora os negros compreendam 13% do total de eleitores pesquisado, eles respondem por 26% dos eleitores excluídos da lista.

O caso dos presidiários
Proporcionalmente, os EUA são líderes mundiais em número de pessoas encarceradas, com 2,3 milhões de detentos. Entre os presidiários, os negros superam os hispânicos em proporção maior que dois para um, e os brancos, de mais de seis para um. Esse é mais um dos motivos para que a proporção de cidadãos negros que não poderão votar neste ano seja ainda mais alta porque eles estão entre os 882.300 negros servindo sentenças de prisão ou entre os mais de dois milhões que já cumpriram suas penas, mas continuam sem direito de voto. Alguns Estados determinam que certos crimes condenam os culpados à perda permanente de seu direito de voto. A Virgínia adota posição especialmente severa quanto a crimes relacionados a drogas, o que representa o principal motivo para que tantos americanos negros estejam presos lá. Os criminosos libertados precisam esperar sete anos antes de se registrarem como eleitores, e o pedido precisa ser acompanhado por sete documentos, diversas cartas de referência e uma carta ao governador detalhando "como a vida do requerente mudou" e "por que ele acredita que seus direitos devam ser restaurados". O Mississippi adota regime semelhante: com 155.127 prisioneiros libertos entre 1992 e 2004, o total de pedidos de restauração do direito de voto que as autoridades aprovaram foi de apenas 107. A perda dos direitos políticos dos ex-detentos do Kentucky reduziu em 24% o eleitorado negro potencial. Apenas Maine e Vermont permitem que detentos votem. Treze Estados, entre os quais Pensilvânia e Michigan, permitem que ex-detentos votem, enquanto 25 deles suspendem o direito ao voto durante o período de liberdade condicional. Os outros dez dificultam a tal ponto o processo de restauração do direito de voto que a maioria prefere nem tentar.

2) Embora um comparecimento alto do eleitorado negro deva beneficiar Obama, conquistar a Presidência dependerá das decisões dos eleitores brancos (a maioria dos hispânicos se definem como brancos ou não designam raça). No total, 94,2 milhões de brancos participaram da eleição de 2004, ante apenas 13,7 milhões de negros; e 58% dos brancos votaram em George W. Bush, ante apenas 41% que optaram por John Kerry. Assim, a campanha de Obama teria de convencer muitos brancos a mudar de opinião. Já existem sinais de perigo. Em três Estados, a questão racial constará da cédula: Colorado e Nebraska votarão sobre a proibição de programas de ação afirmativa. Os indícios são de que as propostas serão aprovadas, e com votos de sobra. O motivo não é difícil de identificar. Incluir um referendo sobre a ação afirmativa na eleição encoraja as maiorias brancas a se identificar em termos raciais. Elas votarão para restaurar seus direitos. O que poucas vezes se diz abertamente é que muitos brancos se sentem racialmente lesados. Eles não conseguem admissões ou promoções e por isso sentem que o peso da ação afirmativa recai sobre suas costas. E tampouco se pode dizer que estejam errados. O termo "amargurado", que Obama empregou, pode descrever muitas famílias brancas de classe operária ou média cujos filhos terminaram rejeitados por universidades em seus Estados. Assim, uma tarefa da campanha de Obama é garantir que essa causa branca -e é esse o nome que a questão merece- não influencie a disputa presidencial. Embora Colorado e Nebraska contem com apenas 14 votos no Colégio Eleitoral, eles poderiam fazer diferença. Ainda que pesquisas indiquem Obama e o republicano John McCain com percentuais próximos, existe uma chance de que as porcentagens reais sejam diferentes. Algumas pessoas dizem aos pesquisadores que votarão em Obama, mas podem estar mentindo. É "o efeito Bradley", uma referência a Tom Bradley, prefeito negro de Los Angeles derrotado na disputa ao governo do Estado, em 1982. Embora todas as pesquisas o mostrassem na liderança diante de seu oponente branco, isso não ocorreu. As coisas não se provaram muito diferentes em outras eleições que envolviam candidatos negros. Em 1989, David Dinkins tinha vantagem de 18 pontos nas pesquisas da disputa da Prefeitura de Nova York, mas sua margem de vitória foi de apenas 2 pontos. No Michigan, em 2006, a última pesquisa previa que a proposta de proibição da ação afirmativa venceria com estreitos 51%, mas ela obteve 58%. Trata-se de um efeito Bradley de sete pontos, o que não é pouco. Os especialistas em pesquisas explicam que os respondentes muitas vezes mudam de idéia no último minuto ou que conservadores se dispõem menos a responder. Um outro fator é que mais eleitores ausentes têm votado pelo correio, e não se sabe de que forma essas decisões antecipadas são refletidas nas pesquisas. Nas pesquisas de boca-de-urna, os resultados indicam que os eleitores brancos votaram em candidatos negros, mas os totais dos distritos em que as pesquisas são conduzidas não confirmam essa votação. Ou seja, os eleitores mentem para pesquisadores. Quase todas as pessoas que rejeitam candidatos negros alegam ter motivos não raciais para fazê-lo. E muitas delas acreditam no que estão dizendo. Por isso, não estou convencido de que o efeito Bradley não se fará sentir este ano. A campanha de Obama faria bem em imprimir cartazes em letras garrafais para todos os seus escritórios: SUBTRAIAM 7 PONTOS PERCENTUAIS! Tomei o cuidado de não usar o termo "racismo" até agora. O termo em si se tornou um obstáculo à compreensão. Quando os brancos o ouvem, tendem a congelar e a apresentar uma lista de motivos pelos quais não se aplica a eles. Afinal, a maioria dos americanos admira Oprah Winfrey, gosta de Tiger Woods e respeita Colin Powell. Mas o racismo persiste, ainda que não expresso publicamente e especialmente na crença de que a pessoa provém de uma categoria superior. Nesse caso, porém, não muito brancos consideram Obama como inferior a eles -esnobe e arrogante, talvez, mas ninguém critica seu intelecto. Há algum ressentimento quanto à percepção de que negros desfrutam de privilégios e até mesmo temor de alguma forma de revanche racial. Quanto aos sentimentos subjacentes, as pesquisas não ajudam muito. As pesquisas não têm como medir as apreensões brancas quanto a ter um negro na chefia do governo. Michael Tomasky disse que, para vencer, Obama "precisará construir coalizões multi-raciais". O que parece mais necessário, em minha opinião, é a condução de duas campanhas paralelas: uma discreta, para garantir o máximo comparecimento negro, e uma mais pública, para enfatizar ao máximo o apoio branco de que a chapa Obama-Biden já desfruta. Seus comícios, discursos e propaganda se beneficiariam da presença de rostos brancos, seguidos por declarações de apoio de veteranos brancos das Forças Armadas, líderes sindicais e chefes de polícia e bombeiros. Os partidários negros do candidato saberão o que está acontecendo, e não interpretarão o fato como rejeição.

NA FOLHA ONLINE
www.folha.com.br/082562
leia a íntegra deste artigo
ANDREW HACKER é cientista político, professor emérito do Queens College (Nova York) e autor de "Two Nations: Black and White, Separate, Hostile, Unequal" (Duas nações: branca e negra, separadas, hostis, desiguais)
Tradução de PAULO MIGLIACCI




Recomendação de leitura:

A Oxfam Internacional publicou na semana passada o livro /"From Poverty to Power: How
Active Citizens and Effective States Can Change the World" /(Da Pobreza ao Poder: como cidadãos ativos e Estados efetivos podem mudar o mundo), um amplo relatório sobre a situação da pobreza e estratégias para a sua superação em todo o mundo, que traz em seu suplemento alguns estudos de caso sobre alguns países.
Seguem anexos dois artigos sobre o Brasil (Desigualdade Racial e Participação), que foi elaborado pelo atual assessor de direitos humanos do INESC, Alexandre Ciconello:

*"O desafio de eliminar o racismo no Brasil: a nova institucionalidade no combate à desigualdade racial"


*"A participação social como processo de consolidação da democracia no Brasil "*

Abaixo segue o link da publicação em inglês:
*_http://publications.oxfam.org.uk/oxfam/add_info_052.asp_*

Atenciosamente,

Equipe Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos - INESC
SCS - Qd. 08 Bloco B-50 Salas 433/441 Edifício Venâncio 2.000 70.333-970
Brasília/DF BRASIL Tel: 55 (61) 3212.0200 Fax: 55 (61) 3212.0216
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