sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Se você me nega, eu me assumo. O direito à saúde e a busca por justiça social


Fernanda Lopes, pesquisadora e militante do movimento negro, mestre e doutora em Saúde Publica. É membro do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do Ministério da Saúde e representante da Articulação de ONGs de Mulheres Negras no Conselho Nacional de Saúde. Atualmente coordena as ações de saúde do Programa de Combate ao Racismo Institucional


Se você me nega, eu me assumo. O direito à saúde e a busca por justiça social.

Começo este texto perguntando a você leitora, a você leitor, o que entende por saúde. Se me responder saúde é qualidade de vida e cidadania, é um direito de todos e todas, é ter acesso aos bens e aos serviços que atendam minhas necessidades básicas enquanto ser humano, é o resultado das minhas condições de vida, moradia, educação, alimentação e de trabalho, que é um elemento importante para que eu me desenvolva como ser humano, para que o meu pais cresça e se desenvolva ou algo semelhante, vou te dizer é isso aí. Saúde é tudo isso, e um pouco mais.


Se voltarmos um pouco na historia veremos que, no cenário internacional, a saúde é apresentada como direito desde a década de 60 (Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), entretanto, no cenário nacional ela só se constitui em um direito de todos e todas quando da promulgação da Constituição Federal - em 1988.


Ao instituir a saúde como direito de todos e todas e dever do Estado, o Brasil se obriga a formular e executar políticas sociais e econômicas com vistas à redução do risco de doença e outros agravos, acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, com garantia de que as necessidades e demandas da população sejam contempladas da melhor forma possível. É neste cenário que a saúde passa a integrar o sistema nacional de seguridade social e que a política de saúde se constitui numa política de direitos. É assim, e com estes objetivos, que se concebe o Sistema Único de Saúde (SUS).


Para fazer valer os princípios constitucionais, o Estado brasileiro estabelece que a universalidade, integralidade, eqüidade, controle social e descentralização devem ser os alicerces do SUS, ou seja, se compromete a garantir "tudo, para todas e todos, de acordo com as diferentes necessidades, partindo de uma construção democrática e descentralizada".


Desde a 8ª Conferencia Nacional (1986), as diretrizes para o agir em saúde levam em consideração o fato de as condições de saúde das pessoas, e das populações como um todo, serem determinadas por fatores biológicos e sociais de ordem econômica, ambiental, política ou cultural. Naquele momento histórico, os avanços nas discussões sobre saúde e direitos não contemplavam o fato de negros e negras acumularem desvantagens no acesso aos benefícios das ações do Estado, de suas instituições e organizações e, por conseqüência, apresentarem experiências desiguais em nascer, viver, adoecer e morrer.
A luta por dignidade e justiça social são premissas da luta por direitos, da luta pela vida empreendida por homens e mulheres membros de grupos historicamente discriminados, com atenção especial para os empreendimentos de negras e negros. Nesse sentido, cabe aqui um parênteses para que as mais jovens e os mais jovens tenham informações básicas sobre os caminhos percorridos na construção do campo saúde da população negra.


Arrombando portas
No inicio da década de 90 o movimento de mulheres negras, que já tinha o direito à saúde como uma de suas prioridades de luta, impulsiona as discussões sobre direitos sexuais e reprodutivos, considerando que o racismo e o sexismo imprimem marcas diferenciadas no exercício desses direitos. Em 1995, negros e negras apresentam uma serie de demandas ao governo federal por ocasião da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida. Em resposta a algumas destas demandas, em 1996 o Quesito Cor é incluído nas declarações de nascidos vivos e de óbito e passa a constar nos sistemas nacionais de informação sobre mortalidade (SIM) e nascidos vivos (SINASC). Também foi uma conquista importante a introdução do Quesito Cor nos dados de identificação dos sujeitos das pesquisas (resolução nº. 196/96, que versa sobre as Normas de Ética em Pesquisas envolvendo Seres Humanos).


A significativa participação da sociedade civil e do governo brasileiro na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (África do Sul, 2001) ampliou o debate público sobre a questão racial e intensificou as discussões sobre como o setor público poderia estabelecer compromissos mais efetivos e sustentáveis com o combate ao racismo e às desigualdades dele decorrentes.


Em resposta às demandas da sociedade civil, acontece em Brasília, em dezembro de 2001, o Workshop Inter-Agencial de Saúde da População Negra, do qual participaram estudiosas sobre desigualdades raciais em saúde, ativistas e especialistas do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento/PNUD, Organização Pan-Americana de Saúde/OPAS e Ministério do Governo Britânico para o Desenvolvimento Internacional/DFID. Naquela ocasião foi elaborado o documento Política Nacional de Saúde da População Negra: uma questão de eqüidade, que se estrutura em quatro componentes interdependentes: produção de conhecimento científico; capacitação dos profissionais de saúde; informação da população; e atenção à saúde. Para além dos investimentos na área da saúde, e atentos às potencialidades daquele momento, DFID e PNUD desenvolveram um trabalho conjunto que resultou na formulação do Programa de Combate ao Racismo Institucional/PCRI, cujo principal objetivo é fortalecer a capacidade do setor público na identificação e prevenção do racismo institucional e a participação das organizações da sociedade civil no debate sobre políticas públicas racialmente eqüitativas.


Buscando garantir um ambiente mais favorável
No inicio de 2003, foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial/SEPPIR, e em novembro do mesmo ano esta Secretaria firma um Termo de Compromisso com o Ministério da Saúde, onde se reconhece que, para a efetivação do princípio da eqüidade, o racismo deva ser considerado como um dos determinantes sociais das condições de saúde e que também devam ser considerados os processos de vulnerabilização aos quais estão expostos os diferentes segmentos populacionais, com destaque para a população negra.


Ainda em 2003, negras e negros participam da 12ª Conferencia Nacional de Saúde (2003) e garantem a aprovação de mais de 70 deliberações que contemplam a perspectiva racial, de gênero e geração e que se apresentam permeadas pelos princípios da não discriminação em relação à orientação sexual, filiação religiosa, porte de alguma doença e/ou limitação. Para que se compreenda a importância deste fato, destacamos que as conferencias são eventos públicos, de caráter periódico, cuja principal função é a definição das diretrizes gerais da política de saúde. Organizadas pelos conselhos municipais, estaduais e nacional de saúde, as conferencias são os fóruns onde usuários e usuárias, trabalhadores e trabalhadoras de saúde, governo, prestadores e prestadoras de serviços e outros, discutem os grandes temas da saúde, tais como gestão, financiamento e recursos humanos. É neste espaço de participação e controle social que se deliberam os caminhos para a consolidação do SUS.


Em 2004, por meio de portaria ministerial, foi instituído o Comitê Técnico de Saúde da População Negra/CTSPN, composto por ativistas, pesquisadoras e pesquisadores e especialistas em saúde da população negra, representantes de todas as áreas técnicas do Ministério da Saúde e instituições a ele conectadas, bem como dos Conselhos Nacionais de Secretários Municipais e Secretários Estaduais de Saúde. Ainda em 2004, realiza-se o Seminário Nacional de Saúde da População Negra e a Conferência Nacional de Assistência Farmacêutica, onde se delibera pelo acolhimento das demandas relacionadas ao tratamento de pessoas com doença falciforme e pelo reconhecimento dos saberes, tradições e praticas da medicina tradicional e da fitoterapia empreendidas por sacerdotes e sacerdotisas das religiões afro-brasileiras.


Em 2005 realiza-se a Conferencia Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que destaca a importância estratégica dos avanços em saúde para a melhoria da qualidade de vida da população negra; a Conferencia Nacional de Ciência e Tecnologia onde se estabelece a sub-agenda Saúde da População Negra entre as prioridades para investimentos e pesquisas. Ainda nesse ano, membros do CTSPN contribuem decisivamente para o reconhecimento do racismo e das desigualdades sociais que dele decorrem, como fatores catalisadores do processo de vulnerabilização da população negra frente às DST-HIV/aids; para a inserção da perspectiva racial no Plano Nacional de Saúde; para a realização do estudo sobre diferenciais raciais em saúde cujos resultados foram apresentados por meio da publicação Saúde da População Negra no Brasil: contribuições para a promoção da equidade e para a analise dos dados apresentados na publicação Uma Análise da Situação de Saúde no Brasil - Atlas Saúde Brasil 2005. Para fechar o ano, durante a revisão do Plano Plurianual para 2006-2007 é aprovada uma linha orçamentária especifica para saúde da população negra, onde estão definidos valores para criação e/ou consolidação de redes, com especial destaque para a rede de religiões afro-brasileiras e saúde; ampliação da participação de negras e negros nos espaços formais de controle social; criação de comitês técnicos de saúde da população negra nos estados e em algumas capitais; realização do 2º Seminário Nacional de Saúde da População Negra.


Colhendo grãos de pólen
Em 2006 algumas conquistas foram consolidadas, com destaque para a regulamentação da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme; a Carta de Direitos dos Usuários da Saúde, que ressalta o direito de receber tratamento humanizado, acolhedor e livre de qualquer discriminação; a elaboração de peças para a sensibilização de profissionais de saúde quanto o tema combate ao racismo, a homofobia e as intolerâncias passaram a figurar nos debates sobre qualidade da atenção a saúde e formação permanente dos profissionais; foi garantida uma vaga para o movimento social negro no segmento usuários do Conselho Nacional de Saúde/CNS, entre outras.
A eleição para o período 2006/2009 aconteceu em agosto e na representação do Movimento Negro estão Articulação de Ongs de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), Coordenação Nacional das Entidades Negras (CONEN) e Congresso Nacional Afro-Brasileiro (CNAB). Para garantir a participação e envolvimento de todas as pessoas eleitas, optou-se pelo rodízio de titularidade e suplência, como descrito no quadro ao lado.


Também conquistam representação especifica no CNS os(as) estudantes secundaristas, de graduação e pós-graduação e o movimento em defesa da livre orientação sexual e expressão de gênero. Alem destas novidades, é importante que as leitoras e os leitores ao mesmo tempo saibam que, pela primeira vez na historia do SUS, as/os representantes titulares de usuários, profissionais de saúde e comunidade cientifica, prestadores de serviço e entidades empresariais, vão escolher, por meio de voto direto, o presidente do Conselho. Isto deve acontecer em novembro ou dezembro. E tem mais, pelo que tudo indica, neste mesmo período, serão definidas as diretrizes para a política nacional de atenção integral a saúde da população negra e pactuadas as atribuições, competências e responsabilidades de cada esfera de governo para sua efetivação.


E importante lembrar que o principio da descentralização no SUS prima pela redistribuição do poder decisório, dos recursos e das competências quanto às ações e aos serviços de saúde entre as várias esferas de governo (federal, estadual e municipal). Aos municípios cabe maior responsabilidade na promoção das ações diretamente voltadas aos seus cidadãos e cidadãs.
Mas, afinal, no mundo real, quando estas mudanças poderão ser percebidas?
Se vocês me perguntarem se já podemos nos considerar satisfeitos e satisfeitas com as conquistas na área da saúde, eu lhes convido a pensar no que esta acontecendo no seu município, no seu bairro, na sua comunidade. E agora eu lhes pergunto: negros e negras das diferentes faixas etárias, residentes em localidades diversas estão mobilizados para exigirem o direito a saúde e a não discriminação? Estão apresentando suas necessidades aos serviços de saúde, exigindo que estas se transformem em demandas e que se estabeleçam novos processos de trabalho?


Os(as) profissionais responsáveis pela gestão da informação em saúde já produziram e analisaram diagnósticos de situação de saúde desagregando os dados por cor/raca/etnia? Estes dados já foram discutidos com os(as) colegas? Caso tenham sido identificadas desigualdades passiveis de serem evitadas e/ou de terem seu impacto negativo minimizado, estes dados já foram discutidos com a comunidade local? Já foram estabelecidas parcerias com outras áreas da saúde, com outros setores do governo local, com organizações não governamentais?


Os(as) gerentes dos serviços já definiram ações especificas para a identificação de atitudes, comportamentos e praticas racistas e discriminatórias nos seus espaços de trabalho? Já foram construídas estratégias para a abordagem dos temas relacionados ao racismo, às desigualdades de gênero e as condições de saúde de usuários(as) e de trabalhadores(as)? Já foram definidos indicadores para monitorar possíveis mudanças e avaliar resultados?


Já se buscou tornar evidente o impacto diferenciado das ações do governo junto aos diferentes segmentos populacionais? As autoridades, os tomadores de decisão, reconhecem que o racismo institucional existe e que sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pela ação do Estado, das instituições e organizações? Reconhecem que se o combate ao racismo institucional não for adotado como um objetivo estratégico não haverá efetividade, eficácia e eficiência em sua gestão?


É isso. Na pratica ainda há muito por fazer. Temos que ampliar esta discussão. O direito a informação também é um direito humano.
Todas e todos precisam se envolver. Faça a sua parte.


Estamos num momento de transição. É preciso que estejamos mobilizados e que tenhamos nitidez em relação àquilo que pretendemos alcançar.
Pela vida e em defesa do SUS participe do DIA NACIONAL DE MOBILIZAÇÃO PRÓ-SAUDE DA POPULAÇÃO NEGRA, 27 de outubro.
Diga não à discriminação e a intolerância. Exija seus direitos: combata o racismo.



Entre em contato com a secretaria nacional de mobilização instalada na ONG CRIOLA. Fone: 21. 25186194 ou 21. 9493699. E-mail: controlesocial@criola.org.br ou mguimar@uol.com.br

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